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sexta-feira, 1 de julho de 2011

Flora Figueiredo


Aqui vou postar alguns poemas dessa maravilhosa autora.

Sugestão

Faça o seguinte:
Assopre o pensamento triste,
deixe escorrer a última lágrima,
conte até vinte.
Abra então a janela,
aquela que dá para o vôo dos pardais,
procure a luz que pisca lá na frente
(evite as sombras que ficaram lá para trás).
Ao encontrá-la,
coloque-a dentro do peito
de tal jeito, que possa ser notada
do lado de fora.
Acrescente agora uma pitada de poesia,
do tipo que passa por nós todos os dias
e nem sequer consegue ser notada.
Aumente o brilho
com toda a intensidade
de que um sorriso é capaz.
A felicidade é o seu limite,
e o paraíso é você mesmo(a) quem faz.






Lembrete

Não deixe portas entreabertas
Escancare-as
Ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas
Passam apenas semiventos,
Meias verdades
E muita insensatez.

borbo124



Estou perdidamente emaranhada
em seus fios de delícias e doçuras.
Já não encontro o começo da meada,
não sei nem mesmo
se há uma ponta de saída,
ou se a loucura
vai num ritmo crescente
até subjugar a minha vida.
Não importa.
Quero seus nós de seda
cada vez mais cegos e apertados
a me costurar nas malhas e nos pêlos.
Enquanto você me amarra,
permanece atado
na própria trama redonda do novelo







Lição de Casa

Você tampa a panela,
dobra o avental,
deixa a lágrima secar no arame do varal.
Fecha a agenda,
adia o problema,
atrasa a encomenda,
guarda insucessos no fundo da gaveta.
A idéia é tirar a tarja preta
e pôr o dedo onde se tem medo.
Você vai perceber
que a gente é que faz o monstro crescer.
Em seguida superar o obstáculo,
pois pode-se estar perdendo
um espetáculo acontecendo do outro lado.
Atravessar o escuro
até conseguir tatear o muro,
que é o limite da claridade.
Se tiver capacidade para conquistá-la,
tente retê-la o mais que puder.
Há que ter habilidade, sem esquecer
que a luz é mulher.
Do inferno assim desmascarado,
é hora de voltar.
Não importa se é caminho complicado,
se a curva é reta,
ou se a reta entorta.
Você buscou seu brilho, voltou completa;
jogou a tranca fora, abriu a porta.





Flutuações
O sonho aprendeu a pairar bem alto, lá onde o sobressalto nem sequer nasceu.
Namorou a trôpega ilusão, até que trêfego e desajeitado, desprendeu-se de seu reino idealizado, 

veio pousar tamborilante em minha mão.
Assim, aquecido e aconchegado, parece que se esqueceu de ir embora.
Na hora em que ressona distraído, eu lhe pingo malemolências ao ouvido, à sua inquietação eu me sujeito.
Eis que o sonho dorme agora aqui comigo, seu corpo repousa no meu peito. 


borbo035


Enlevo
Eu olho você grande e distante
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro. 
borbo124


Vento novo
Estava enrolada em teias e traças, 
debaixo da escada, lá no subsolo da casa fechada. Começava a tomar ares de desgraça. 
Manchada do tempo, fenescia a esperar que um dia alguma coisa acontecesse. 
Antes que se perdesse completamente, sentiu passar um vento cor-de-rosa. 
Toda prosa, espanou a bruma, pintou os lábios e sem vergonha nenhuma caprichou no recorte do decote. 
A felicidade volta à praça cheia de dengo e de graça, 
com perfume novo no cangote. 




A pedidos
Querem um verso mas não sou capaz. 

Vejo a palavra 
fraturar as entrelinhas, 
tento soldá-las, mas não são minhas.
Rompeu-se o verbo e me deixou pra trás.




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RETIRADA


Respeite o silêncio
a omissão,
a ausência.
É meu movimento de deserção.
Abandonei o posto,
rompi a corda,
desacreditei de tudo.
Cansei de esperar que finalmente um dia,
minha fotografia
fizesse jus ao seu criado-mudo.


flor229

Grafite

Não seremos marido e mulher,
nem mesmo amantes.
Que tal apenas namorados intermitentes,
docemente nos amando, intinerantes?
Trocaremos afagos, quando o dia adormecer,
na encruzilhada;
deixarei em você meus cheiros de mulher.
Lançaremos olhares disfarçados,
que certamente passarão despercebidos,
pois namorados são de Deus os protegidos.
Quando nossas mãos roçarem-se furtivas,
vão insinuar desejos abafados,
pelas regras da vida censurados,
mas que sãos flores no canteiro, sempre - vivas.
Ao nos encontrarmos pela tarde rua acima,
lá onde a mangueira domina a rotatória,
assinarei um verso sublimado
a grafitar nossa parede divisória




flor219



 Ordem do dia 



Eu abro a janela,você acende o céu,o gato toca o guizo.
Se for preciso,a gente chama a banda,cobre de lírios o espaço da varanda,dá um brilho na pátina da areia.
Risca-se o poente com giz colorido que faça sentido com a pele do mar.
E se, ao final da linha,o rádio anunciar que tudo deu errado:a idéia faliu,a alegria dormiu,o projeto quedou-se malfadado;negou-se o teorema,falhou o sistema,perdeu-se a teoria,então, abriremos por fim a nossa caixa,onde se conservam bem guardados o sonho, o veludo e a fantasia.

flor122

UFA!!!!!!

Acordou, olhou o relógio, 
revirou a cama, pulou fora:
tinha perdido a hora.
Foi acender o fogão, queimou o dedo;
tentou ler o jornal, veio molhado;
quis tomar café, estava aguado;
foi cuidar do canário,
ele voou para cima do armário. 
Ao se enfeitar, borrou o batom;
cantarolando, errou o tom;
chegou ao compromisso atrasada,
tinha tanto pra dizer, não disse nada.
Tomou chuva, tomou vento,
pegou congestionamento,
a luz acabou, o guarda sumiu,
o pneu furou,
a Argentina empatou com o Brasil. 
Recolheu a bandeira, cobriu a cabeça, dormiu.
Era segunda-feira... 









MUDANÇA


Tenho uma notícia pra ler 
em primeira mão: 
reformei ontem meu coração 
e o deixei quase vazio. 
Arranquei-lhe o último fio
de ilusão 
que o tentava iluminar. 
Tirei toda a forração. 
Já não há tons indistintos 
pra confundir 
e nem prateleiras 
pra distribuir planos. 
Rasguei todos os panos 
que cobriram nossas brincadeiras, 
nossos instintos.
Um gesto meio cruel. 
Decepação. 
O pouco de mel 
que ficara guardado, 
derramei 
e descolei o pedaço de sonho que restava ainda, 
grudado. 
Decepção. 
Já não sei se ponho 
poesia pelo teto 
ou se o deixo 
nesse desleixo discreto 
de contemporização. 
Só quero nuvens mansas 
a atapetar-lhe o chão, 
pra que, por fim, a esperança 
possa dançar seus passos novamente 
no meu mais recente espaço da emoção.





flor036


Como nascem as manhãs 

          O fundo dos olhos da noite guarda silêncios.
Esconde na retina a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medofaz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.





Página Final

Mais uma vez o tempo me assusta.
Passa afobado pelo meu dia,
Atropela minha hora,
Despreza minha agenda.
Corre prepotente
A disputar lugar com a ventania.
O tempo envelhece, não se emenda.
Deveria haver algum decreto
Que obrigasse o tempo a desacelerar
E a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta
Dos livros que vão se empilhando,
Das melodias que estão me aguardando,
Das saudades que venho sentindo,
Das verdades que ando mentindo,
Das promessas que venho esquecendo,
Dos impulsos que sigo contendo,
Dos prazeres que chegam partindo,
Dos receios que partem voltando.
Agora, que redijo a página final,
Percebo o tanto de caminho percorrido
Ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo, e sua pressa desleal,
Agradeço a Deus por ter vivido,
Amanhecer e continuar teimando...







Alma

Acho que os sentimentos tem células,
pois as sinto remexer,
intensas libélulas
a se fundir
e a se desprender,

Alimentam-se de lágrimas e risos.
E sempre crescem.
E a cada instante que vivo
mais então se expandem
e mais amadurecem.

seu núcleo me pede pulsações
e quando me perco pelas emoções
ele se avoluma e me maltrata.
E chega a ser tão grande seu efeito
que rompe o peito e sangra
e se dilata.

Ah! minhas células emotivas!
Quero-as em mim
coladas e cativas
fazendo-me viver intensamente.
Eu as batizo com o nome de "alma"
e as reponsabilizo a viver eternamente
ainda quando o coração se acalma
e põe-se a dormir
irreversivelmente







PÉS

Conheço minhas pegadas, de tanto ir e vir.
Às vezes pisam fundo
como carregassem o peso do mundo;
às vezes ficam amassadas
sob o descuido das outras pegadas.
Sobre elas, a lua nova desdobra sua saia
em cena de nudez no chão da praia.
Só perco meus passos na maré cheia:
essa mania do mar de tirar seus sapatos sobre a areia.
Conheço bem minhas pegadas.
Sou capaz de identificá-las em qualquer lugar.
Se ao menos eu soubesse aonde vão me levar...






ROYAL FLUSH

Reverências à Dama de Copas,
que ousa andar de coração à mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas
em vez de paus e pedras enfeitadas
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelo;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, toma a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta, expulsa da canastra.





Regulamento

Eu não juro nada
Por coisa alguma,
pois que todo caminho é incerteza.
A ordem se desarruma,
a hitória se desajeita,
o arranjo troca de lado e vira a mesa.
Tampouco prometo.
Nesse jogo de regras e tratos,
rolam os dados,
mudam os fatos,
num ciclone célere, inclemente.
Só o que posso é me entregar completamente
a toda causa que me dedicar,
a cada tempo que eu puder viver,
a cada amor que me fizer amar.





Despedida

Se tiver que ir vai
O que fica para trás
não sendo mentira,
não racha,
nem rompe,
não cai.
Ninguém tira
Já que vai
segue se depurando pelo trajeto
para desembarcar passado a limpo
sem máscara,
sem nada, sem nenhum desafeto.
Quando chegar
sobe ao ponto mais alto do lugar
onde a encosta do mundo
faz a curva mais pendente
E então acena
de onde estiver, quero enxergar
esse momento em que você vai constatar
que a vida valhe grandemente a pena.




Receita
Dispense os chás de ervas,
os calmantes,
as receitas de lorotas em conserva,
alucinógenos,
bebidas inebriantes,
álcool em excesso,
glicógenos,
os moderadores, os estimulantes,
as lições de poder sob medida.

Liberte o coração e beba a vida.




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